O talento e a bravura de Vanusa por pesquisadores e jornalistas mineiros


"Uma artista imensa, carismática, doce, com uma presença de palco incrível e uma trajetória de vanguarda, que merece ser resgatada na memória da música brasileira", diz Rossana Decelso
Por PATRÍCIA CASSESE
08/11/20 - 14h39
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Foto histórica: Rossana Decelso entre o saudoso Vander Lee e a rainha Vanusa - "Ela era muito fã dele", lembra a cantora mineira

Foto: Arquivo Pessoal

Ao lado de Ronnie Von, na novela "Cinderela 77", na qual vivia uma versão moderna da princesa dos contos de fada: foi nesta época que o jornalista Adilson Marcelino passou a prestar atenção na artista

Foto: Arquivo TV Tupi

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Vanusa Santos Flores, ou simplesmente Vanusa, falecida na manhã deste domingo, aos 73 anos, devido a uma insuficiência respiratória, nasceu no estado de São Paulo, mais precisamente, em Cruzeiro. Mas foi nas cidades mineiras de Uberaba e Frutal que a futura diva foi criada. Na primeira, aliás, foi onde começou a soltar a voz, então como crooner do grupo Golden Lions, que se apresentava em bailes. Foi em um deles que seu talento chamou a atenção de Sidney Carvalho, de uma agência de propaganda, a Prosperi, Magaldi & Maia, que, na sequência, a convidou para ir a São Paulo. Vanusa deixou Minas, mas permaneceu no coração de muitos mineiros, que seguiram acompanhando sua trajetória de sucesso ascendente. Neste percurso, outros fãs, mais novos, foram arrebanhados ao séquito de admiradores da loira.

Não por outro motivo, um dos últimos shows da cantora na capital mineira aconteceu dentro de um projeto cujo nome é emblemático da magnitude de Vanusa: "Salve Rainhas", idealizado pelo produtor e crítico musical Pedrinho Alves Madeira. No caso, a participação da intérprete aconteceu em 2013, no palco da Funarte MG. "Me parece, e acho que não estou enganado, que foi mesmo a última vez em que ela passou na cidade", pontua Pedrinho. Ele conta que tê-la no projeto foi algo de certa forma inusitado, a princípio. "Confesso que, até ali, a Vanusa não era uma artista especificamente do meu radar. Mas a intenção do projeto era justamente essa, trabalhar com cantoras brasileiras com mais de 30 anos de carreira e das mais variadas significações dentro da história da MPB, Tanto que tivemos, além da Vanusa, outras 20 intérpretes de estilos variadíssimos, como Eliana Pittman, Dóris Monteiro, Rosemary, Amelinha, Maria Creuza, o Quarteto em Cy, Titane, Babaya, Maria Alcina...", enumera.

Sobre o contato presencial com Vanusa, Pedrinho narra detalhes. "Foi uma experiência muito rica trabalhar com ela. Uma superprofissional, tínhamos histórias ótimas para contar sobre a trajetória dela. E o seu repertório era muito surpreendente. Eu, na verdade, considero que, além da cantora, a Vanusa é uma grande compositora de uma época na qual ainda não se tinha essa tradição de grandes compositoras na MPB, salvo raríssimas exceções. As antecessoras a ela foram aquelas grandes cantoras e compositoras dos anos 50: Maysa, Dolores Duran e poucas outras. E, dos anos 60, nomes como a Suely Costa, que era de uma linha mais refinada. A Vanusa não, ela compunha num universo que ia do mais sofisticado, vamos dizer assim, ao superpopular - porque essa é a carreira da Vanusa".
O produtor ressalta que, ao escutar os 23 discos que ela deixou gravados, percebe-se que retratam exatamente esta pluralidade. "Há um repertório que deixa o ouvinte surpreso, pois tem canções que até então eram inéditas de gente como Caetano Veloso, Belchior, Zé Ramalho. E em outros discos, um repertório mais 'fraco', na verdade", analisa.

No cômputo geral, Alves Madeira considera a discobrafia da cantora irregular e plural. "Talvez ela tenha sido uma das cantoras mais plurais do período. Passou pelo pop, pelo rock, pela canção popularesca, pelo samba-canção... e tudo com uma propriedade única, porque ela era uma grande intérprete. Não estou falando isso só pelo fato de ela ter falecido, mas ela era de verdade uma grande intérprete. Tanto podia segurar uma música do Zé Ramalho e fazê-la lindamente, como fez, ou do Caetano, ou do Belchior, ou uma música do Antônio Marcos, que foi o grande companheiro dela; quanto também músicas de um peso menor, irregulares mesmo. E isso foi ao longo da carreira inteira".

Pedrinho cita em particular o último disco lançado por Vanusa, que tinha o nome dela, "Vanusa Santos Flores", produzido por Zeca Baleiro. "É um disco surpreendente. Ela está lá inteira, íntegra e forte, cantando Vander Lee, Zeca Baleiro, Angela Rô Rô, músicas dela mesma. Enfim: a Vanusa merece, e não só neste momento do desencarne dela, ser redescoberta".
Foi justamente durante este projeto idealizado pelo produtor que a escritora e jornalista especializada em música Malluh Praxedes entrevistou Vanusa.

À pedido do Magazine, Malluh relembrou o encontro. "Vanusa estava marcada pela triste história do 'Hino Nacional' (poucos anos antes, mais precisamente em 2009, a cantora errou a letra do hino em uma apresentação na Assembleia Legislativa de São Paulo; à época, o caso a fez virar motivo de chacota país afora). Mas, claro, essa passagem não fazia parte do meu roteiro de perguntas. Falamos sobre a 'mineiridade' dela - já que viveu em Uberaba e Frutal... E das diversas atuações: foi atriz do musical 'Hair' (1972), lutadora na TV ao lado de Ted Boy Marino, atuou no programa 'O Bom', ao lado de Eduardo Araújo, e também da Jovem Guarda. Falamos da compositora - 'Manhãs de Setembro' e 'Mudanças', por exemplo - também. E Vanusa conversou sobre seus amores e pais de seus filhos, Antonio Marcos e Augusto César Vanucci. Com um conheceu o verdadeiro amor e, com o outro, a espiritualidade", repassa.

Para Malluh, a lembrança daquele dia foi das melhores. "Encontrei, naquela mulher, uma pessoa guerreira e corajosa. No palco, ela tirou os sapatos e cantou o repertório que quis, para alegria de fãs que lotaram o teatro. Foi gentil com todos, recebeu as pessoas no camarim (o Vander Lee, por exemplo)... Mas senti nela uma tristeza que não sei definir. Fiquei impressionada com aquela mulher que ainda conservava uma bela voz e uma forte energia", rememora.

Jornalista e profundo pesquisador das vozes femininas da música popular e da MPB, e nome por trás do site Mulheres do Cinema Brasileiro, Adilson Marcelino compartilhou com a reportagem seu sentimento de luto. "Estou arrasado. Morre um pouco de mim e morre grande parte do coração da canção popular no Brasil, essa vertente fundamental que expressa o que somos, de onde viemos, para onde vamos - a expressão do coração do povo do Brasil, tão maltratado neste país em todas as instâncias, e não à toa que a canção popular também é tão maltratada. Neste país parece que o que existe é só MPB - que é maravilhosa, como todos sabem, é como ficou conhecida essa geração de ouro a partir dos festivais da canção, sobretudo. Mas a Vanusa habita esse outro lugar, esse outro universo, esse universo das rádios AM que, a cada dia, pelas ondas do rádio, a gente se reconhecia, chorava, sorria e se emocionava".

Como cantora, Adilson a considera de talento excepcional. Mas ele destaca um ponto de sua faceta compositora. "Em um momento em que ainda era muito raro este tipo de expressão, ela falava sobre o fortalecimento, o empoderamento da mulher. A Vanusa cantou música e escreveu letras em que ela falava sobre isso", diz ele, que tem todos os discos da Vanusa e um livro, além de ter tido a oportunidade de ir a dois shows dela, inclusive "no maravilhoso projeto 'Salve Rainhas', do produtor Pedrinho Alves Madeira". Adilson se encantou com a diva quando, dos 13 para os 14 anos, passou a assistir à novela "Cinderela 77", exibida pela extinta TV Tupi. "Uma novela de vanguarda, em que ela era a protagonista, a Cinderela, junto ao Ronnie Von, que era o príncipe. Uma novela do Walther Negrão e do Chico de Assis. E eu era apaixonado por esta novela, sou até hoje. A partir daí, sempre acompanhei e me emocionei com 'Manhãs de Setembro', 'Paralelas' e tantas outras músicas que ela cantou, escreveu, interpretou. Seja de compositores populares - como 'Sonhos de um Palhaço', de Antônio Marcos, seu grande amor - seja de cantores da MPB".

O pesquisador também cita o episódio do Hino Nacional. "A Vanusa foi muito mal tratada pelo país. Aquele episódio foi uma violência que fizeram com uma rainha. Caetano Veloso certa vez saudou o Roberto Carlos dizendo ser muito bom saber quem a gente chama de rei. Esse país não sabe dizer quem é sua rainha - claro, né, até mesmo por ser mulher. Vanusa será sempre a minha rainha, sempre, sempre, sempre. Vou homenageá-la sempre, cantando suas músicas, ouvindo-as. Vanusa, eu te amo para sempre", encerrou.

A cantora mineira Rossana Decelso, amiga e parceira de Zeca Baleiro, se lembra do primeiro encontro com a cantora. "Encontrei Vanusa pela primeira vez quando ela apareceu em show doVander Lee em SP, em 2014. E também em outros shows dele depois - ela era super fã!. Também tive o prazer de fazer a produção e acompanhá-la em noites de autógrafos e pockets-shows durante o lançamento do CD 'Vanusa Santos Flores', produzido por Zeca Baleiro e lançado pela Saravá Discos, em 2015. Foi seu último disco. Uma artista imensa, carismática, doce, com uma presença de palco incrível e uma trajetória de vanguarda, que merece ser resgatada na memória da música brasileira".

A escritora, jornalista e apresentadora (especializada em cultura) Daniella Zupo também falou ao Magazine sobre a partida de Vanusa. "Antes de tudo, a música popular brasileira perde uma de suas maiores intérpretes. Apenas isso já seria razão de tristeza neste domingo. Mas, no caso de Vanusa, temos o agravante de esta trajetória - como uma das maiores vozes do Brasil - ter ficado ofuscada nas ultimas décadas por episódios da vida pessoal, além de uma campanha de humilhação vergonhosa da imprensa sensacionalista após um episódio que viralizou na Internet (referindo-se ao já citado episódio ocorrido em 2009, na Assembleia Legislativa de São Paulo_. Infelizmente, para muitos desavisados, ali Vanusa se transformou na 'cantora do Hino Nacional'”.

Para os desavisados, reitere-se. "Porque a verdade é que Vanusa foi simplesmente uma das intérpretes mais talentosas do país. De uma técnica impecável, capaz de ultrapassar 3 oitavas e chegar a tons dificílimos. Pouca gente hoje sabe, mas, além da cantora que surgiu na Jovem Guarda e ficou depois conhecida por sucessos românticos, Vanusa teve uma fase experimental - que começa em 1969 e segue durante os anos 1970 (resgatada recentemente pelo selo Discobertas). Nela, ousou como poucos em um repertório que incluia psicodelia, rock, samba rock & soul e baladas arrasadoras como a emblemática 'Manhãs de Setembro', que é uma parceria dela com o Mário Campanha. Aliás, no álbum de 1973 tem uma historia curiosa: neste disco ela grava 'What to Do', um rock pesado que guarda semelhanças com uma canção do Black Sabbath de um disco do mesmo ano, gerando a polêmica: quem teria gravado primeiro?'.

Daniella lembra que, há 2 anos, quando Vanusa já estava internada, mas ainda em condições melhores de saúde, fez um vídeo resgatando essa fase mais experimental. "E este vídeo chegou até a ela pelas mãos do filho (Rafael Vanucci) e de um amigo da familia. Segundo me contaram, ela ficou cantarolando as canções destacadas na edição e prometeu me ligar assim que estivesse melhor, para a gente se conhecer. Infelizmente, não deu tempo", lamenta.

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